terça-feira, 22 de junho de 2010

A copa do mundo de futebol na visão do Papa Bento XVI


Com sua periodicidade de quatro em quatro anos, o Campeonato Mundial de Futebol prova ser um acontecimento que atrai centenas de milhares de pessoas. Não há quase nenhum outro acontecimento na terra que alcance uma repercussão de semelhante amplitude. O que demonstra que, através dele, toca-se algo radicalmente humano, e cabe se perguntar onde encontra-se o fundamento deste poder em jogo.

O pessimista dirá que é o mesmo que na antiga Roma. O slogan das massas rezava panem et circenses, pão e circo. Pão e jogos são, queiramos ou não, o conteúdo vital de uma sociedade decadente que já não conhece objetivos mais elevados. Mas mesmo que se aceite essa visão, não seria de modo algum eficiente.

Poderíamos ainda perguntar: onde reside o fascínio do jogo para que chegue a ocupar a um lugar de igual importância que o pão? Com a visão posta na antiga Roma, poderia se responder novamente que o grito do pão e circo é propriamente a expressão do desejo pela vida do paraíso, por uma vida de satisfação sem fadigas e de liberdade plenamente realizada. Na verdade, isso é, em última instância, o conteúdo do conceito de jogo: uma tarefa completamente livre, sem objetivo e sem obrigação, e uma tarefa que, além disso, tensiona e aplica todas as forças do ser humano.

Nesse sentido, o jogo seria, então, uma espécie de tentativa de retornar ao paraíso: sair da escravizante seriedade da vida cotidiana e de seus cuidados para a seriedade livre do que não necessariamente tem que ser e que, justamente por isso, é bonito. Frente a isso, o jogo transcende, em certo sentido, a vida cotidiana; mas, sobretudo na criança, tem ainda antes outro caráter: é um exercício para a vida, simboliza a própria vida e, por assim dizer, a conduz de uma forma plasmada com liberdade.

Na minha opinião, o fascínio do futebol encontra suas raízes no fato de que reúne esses dois aspectos de forma muito convincente. Obriga o homem, acima de tudo, a se disciplinar, de modo que, pela formação, adquira a disposição sobre si mesmo, por tal disposição a superioridade e, pela superioridade, a liberdade. Mas, depois, lhe ensina também a cooperação disciplinada: como jogo em equipe, o futebol obriga a um ordenamento de si mesmo dentro do conjunto. Une através do objetivo comum; o êxito e o fracasso de cada um estão cifrados no êxito e fracasso de todos. Finalmente, o futebol ensina um confronto limpo, em que a regra comum a que o jogo se submete segue sendo o que une e vincula mesmo na posição de adversários e, também, a liberdade do lúdico, quando desenvolve-se corretamente, faz que a seriedade do confronto torne a se resolver e leve à liberdade da partida finalizada. Na qualidade de espectadores, os homens identificam-se com o jogo e com os jogadores e, desse modo, participam da comunidade da própria equipe, do confronto com o outro, bem como da seriedade e da liberdade do jogo: os jogadores passam a ser símbolos da própria vida. Isso também atua retroativamente sobre eles: sabem, com efeito, que as pessoas se veem representadas e confirmadas a si mesmas neles.

Naturalmente, tudo isso pode se perverter por um espírito comercial que submete tudo à sombria seriedade do dinheiro, e o jogo deixa de ser tal para se transformar em uma indústria que suscita um mundo de aparência de dimensões horrorosas. Mas até esse mesmo mundo de aparência não poderia subsistir se não houvesse a base positiva por trás do jogo: o exercício preparatório para a vida e a transcendência da vida em direção ao paraíso perdido. No entanto, em ambos os cenários deve-se procurar uma disciplina da liberdade; na vinculação à regra, exercitar a ação conjunta, o confronto e o valer-se por si mesmo. Se consideramos tudo isso, talvez pudéssemos aprender novamente sobre a vida a partir do jogo. Com efeito, nele torna-se visível algo fundamental: não somente de pão vive o homem; mais ainda: o mundo do pão é, em última análise, apenas a fase preliminar do que é propriamente humano, o mundo da liberdade. Mas a liberdade vive da regra, da disciplina que aprende o agir em conjunto e o correto confronto, o ser independente do êxito exterior e da arbitrariedade, e desse modo chega a ser verdadeiramente livre. O jogo, uma vida: se aprofundamos, o fenômeno de um mundo entusiasmado pelo futebol pode nos oferecer mais que um mero entretenimento.

Texto publicado em 1985 como parte do livro Suchen, was droben ist (Buscar o que é do alto), do então Arcebispo de München, Dom Joseph Ratzinger

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